DADOS EM JOGO NA GESTÃO UNIVERSITÁRIA – BLOG Volume 1 – Edição Especial – abril

15/04/2021 15:13

 

 

A PESQUISA CIENTÍFICA E A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS – LGPD

EDIÇÃO ESPECIAL

A pesquisa científica depende de acesso à dados. Acesso à dados de prontuários médicos, acesso à dados cadastrais, acessos à dados bibliográficos, acesso à dados em bancos de dados de instituições públicas e privadas.

Dentre os dados necessários à pesquisa científica, podem estar informações que permitam a identificação de uma pessoa natural, se enquadrando, portanto, na definição de “dado pessoal”, conforme o artigo 5º, I, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei n. 13.709/2018).

Há, ainda, a possibilidade de os dados cuidarem de origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, vinculado a uma pessoa natural, ganhando cuidados especiais da LGPD sob a definição de “dado pessoal sensível”, conforme a definição do artigo 5º, II, da legislação protetiva.

Desta forma, sempre que a pesquisa cientifica utilizar dados pessoais ou dados pessoais sensíveis, deve haver conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Ocorre que a LGPD, ao prever as hipóteses de sua não incidência, dispõe em seu artigo 4º:

“Art. 4º Esta Lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais:

[…]

II – realizado para fins exclusivamente:

a) jornalístico e artísticos; ou

b) acadêmicos, aplicando-se a esta hipótese os arts. 7º e 11 desta Lei;”.

Pela leitura do dispositivo, verifica-se que a LGPD, em verdadeira dicotomia interpretativa, exclui de sua incidência o tratamento de dados para fins acadêmicos ao mesmo tempo em que impõe a incidência dos artigos 7º e 11, que tratam das bases legais para o tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis, respectivamente.

Não se trata, portando, de não aplicação da LGPD, mas sim de aplicação mitigada (COTS, 2018), devendo o tratamento de dados pessoais para fins acadêmicos ter suporte em uma base legal específica dentre aquelas listadas nos artigos 7º e 11.

As bases legais previstas pela LGPD são: (I) o consentimento do titular; (II) o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; (III) a execução de políticas públicas pela administração pública; (IV) a realização de estudos por órgão de pesquisa; (V) a execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular; (VI) o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral; (VII) a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro; (VIII) a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária; (IX) o necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro; ou (X) a proteção do crédito.

Por exclusão, as bases legais mais adequadas para sustentar o tratamento de dados pessoais em pesquisa cientifica – ou, conforme a LGPD, “para fins acadêmicos” – seriam o consentimento (I) e a realização de estudos por órgão de pesquisa (IV).

O consentimento, embora seja uma base legal que seduza por ser a “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (art. 5º, XII, da LGPD), possui um problema grave, que é a possibilidade de o titular dos dados pessoais revogar o seu consentimento a qualquer momento, conforme disposto no artigo 8º, § 5º, da LGPD.

Não parece crível, portanto, que o pesquisador e sua pesquisa fiquem a mercê dos titulares dos dados, correndo o risco de alteração de seu trabalho e de terem que apagar dados por conta de eventual revogação do consentimento.

Afastada a possibilidade de incidência do consentimento, resta a análise da base legal descrita nos artigos 7º, IV e 11, II, “c”, da LGPD: “realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais sensíveis”.

Destaca-se que o conceito de “órgão de pesquisa” é trazido pela própria LGPD em seu artigo 5º, XIII, como:

“órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico”.

Indaga-se, assim, se uma pessoa natural – um(a) mestrando(a) ou um(a) doutorando(a), por exemplo – estaria sustentada pela base legal mencionada nos artigos 7º, IV e 11, II, “c”, da LGPD, ou seja, se estaria a pessoa natural dentro do conceito de “órgão de pesquisa”?

Conforme se extrai de relatório elaborado pela Comissão Especial destinada a proferir Parecer ao Projeto de Lei nº 4060/2012 (um dos projetos de lei que desaguaram na LGPD), sob o comando do Deputado Orlando Silva:

“Como forma de dar maior clareza aos comandos gerais optamos por incluir definições para “relatório de impacto à proteção de dados pessoais” 33 (inciso XVII), “órgão de pesquisa” (XVIII) e “órgão competente” (XIX). […]. Os órgãos de pesquisa são aqueles consagrados pela legislação de ciência, tecnologia e inovação, isto é, órgãos públicos ou privados sem fins lucrativos, que possuam como missão institucional a pesquisa básica ou aplicada. […][1]” (Grifo nosso).

Constata-se que a preocupação da LGPD para com a pesquisa cientifica foi no sentido de que as pessoas jurídicas próprias desenvolvam a atividade acadêmica com tratamento de dados pessoais pois, conforme ensinam Maurício Barreto, Bethania Almeida e Danilo Doneda:

“Na LGPD, as instituições de pesquisa são responsáveis por aplicação e zelo dos preceitos legais. Pela necessidade de infraestrutura adequada, pessoal especializado e governança de dados, chamamos atenção para existência de centros de dados pessoais criados em alguns países para prover o acesso a dados de qualidade, de forma segura e controlada para pesquisa, avaliação, planejamento e elaboração de políticas”[2].

Desta forma, conclui-se que, sob a nova sistemática legal trazida pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, um(a) mestrando(a) ou um(a) doutorando(a) não detém base legal para o tratamento de dados pessoais para fins acadêmicos.

Não se trata de restrição legal trazida pela LGPD – até mesmo porque um dos fundamentos da lei é o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação (art. 2º, V) –, mas sim de orientação acerca dos cuidados que envolvem o tratamento de dados pessoais, mesmo que para fins acadêmicos.

Assim, será necessário que as instituições de ensino e de pesquisa desenvolvam protocolos para o acesso dos pesquisadores à bancos de dados e informações de caráter pessoal, assumindo a responsabilidade pela segurança dos sistemas de informação, pelo cumprimento da finalidade da pesquisa, pelas boas práticas no tratamento de dados pessoais e pela garantia, sempre que possível, da anonimização dos dados pessoais sensíveis, de modo a viabilizar a compatibilidade da pesquisa cientifica com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

 

[1]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1663305&filename=PRL+1+PL406012+%3D%3E+PL+4060/2012. Acesso em abril de 2021.

[2] BARRETO, Maurício; ALMEIDA, Bethânia; DONEDA, Danilo. Uso de dados na pesquisa científica. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/download/3895/Doneda%3B%20Barreto%3B%20Almeida%2C%202019. Acesso em abril de 2021.

Por:

Marcello Muller Teive, Bacharel em Direito.

  • Pós-graduado em Direito Digital e Compliance.
  • Secretário do Comitê Gestor de Proteção de Dados Pessoais do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Em: 15/04/2021