A contribuição da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais para a promoção dos direitos da personalidade.
Diante da desigualdade econômica e social que assolava o mundo no século XVIII, depois da Revolução Francesa, da Revolução Industrial e da queda do feudalismo, não tardou muito para se perceber que “já não bastava proteger o homem contra os desmandos do Estado. Nem parecia suficiente proteger o homem contra agressões dos seus semelhantes. Era preciso evitar que o próprio homem, premido por necessidades mais imediatas, abrisse mão dos seus direitos essenciais” (SCHEREIBER, 2013, p. 4). Assim, muito antes do surgimento da disciplina de proteção de dados pessoais, diversos juristas defendiam a ideia de que o Estado precisava proteger certos direitos imprescindíveis ao ser humano. Esse entendimento deu ensejo ao surgimento das primeiras concepções em torno dos ‘direitos da personalidade’, concebidas somente na segunda metade do século XIX.
É, contudo, a partir da consagração da dignidade humana como ‘fundamento da liberdade’ pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, influenciando as Constituições da segunda metade do século XX, que os direitos da personalidade passaram a ganhar destaque, por sua estreita ligação com o referido fundamento. “Não foi por outra razão que, no Brasil, após quase um século de esquecimento, os direitos da personalidade ressurgiram a partir da Constituição de 1988 e acabaram expressamente incorporados ao novo Código Civil” (SCHEREIBER, 2013, p. 10), publicado em 2002.
De acordo com o artigo 11 do novo Código Civil brasileiro, “os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. ( BRASIL, 2002). Assim, ninguém pode abrir mão, de modo definitivo, da sua privacidade, da sua honra ou de qualquer outro atributo essencial da dignidade humana.
É discutível, entretanto, toda e qualquer vedação à ‘limitação voluntária’ do exercício dos direitos da personalidade, pois, quando derivada da vontade do titular, é preciso considerar que, em determinadas situações, a limitação voluntária pode não se opor, mas ir ao encontro da realização da dignidade humana do indivíduo. Daqui se depreende que o art. 11 do Código Civil não deve ser interpretado de modo literal (SCHEREIBER, 2013).
A codificação se limitou a tratar de cinco direitos da personalidade: o direito ao corpo, ao nome, à honra, à imagem e à vida privada. Os três últimos encontram previsão expressa no art. 5° do texto constitucional, os demais são referidos como consequência da dignidade humana. Os direitos da personalidade, foram regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, dessa forma, outros direitos, como à identidade pessoal, à liberdade de expressão ou à proteção dos dados pessoais podem merecer a mesma tutela no ordenamento jurídico, pois, a omissão de tal ressalva no Código não impede que outras manifestações da personalidade humana sejam merecedoras de proteção, por força do princípio da dignidade.
Nesse contexto, foi promulgada no Brasil, em 14 de agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), de nº 13.709, segundo a qual a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: I – o respeito à privacidade; II – a autodeterminação informativa; III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais. Com exceção dos fundamentos V e VI, todos os demais têm relação direta com os direitos da personalidade.
A LGPD reuniu regras gerais, criou direitos aos titulares de dados e obrigações às pessoas naturais ou jurídicas que realizam o tratamento de dados pessoais, instituindo sanções aos responsáveis por seu descumprimento, “[…] com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.” (BRASIL, 2018, art 1°).
Conforme o inciso X do art. 5° da Lei Geral, o tratamento de dados consiste em “toda operação realizada com dados pessoais” e somente poderá ser realizado se respeitada, ao menos, uma das dez bases legais previstas em seu art. 7°, das quais o consentimento é considerado por Sombra (2019) a base que confere maior controle e empoderamento ao titular.
Para alguns autores, como Rodotà (1995, 2004), Leonardi (2011), Carvalho (2019) e Mendes (2014), na medida em que surgiram novas formas de tratamento informatizado de dados, o direito à privacidade (ou direito à vida privada) se transformou, deixando de se identificar apenas com o direito de ser deixado só, com a vida íntima e familiar, para incluir a proteção dos dados pessoais. Sob essa ótica, a proteção dos dados pessoais passa a “ser compreendida como uma dimensão do direito à privacidade, que, por consequência, partilha dos mesmos fundamentos: a tutela da personalidade e da dignidade do indivíduo” (MENDES, 2014, p. 35). A proteção de dados seria, então, uma “evolução” da concepção de privacidade.
Atualmente, entretanto, diante da diversidade dos meios de compartilhamento de dados na sociedade da informação e dos usos comerciais ou públicos governamentais que deles se fazem, surge um novo entendimento sobre o tema, em que a proteção dos dados pessoais tende a ser considerada como um direito autônomo, desvinculado do conceito de privacidade, embora atrelado a aspectos da individualidade.
É possível, de fato, que haja ofensa ao direito de autotutela de dados pessoais sem afetar a privacidade do mesmo indivíduo, como quando é necessário retificar dado pessoal perante órgão público ou meramente acessar dado perante instituição governamental ou privada que pode conduzir uma decisão automatizada. (MASILI, 2018, p. 28).
Muito embora não se afaste a existência do pleno diálogo entre esses dois direitos, é certo que existem dados que embora sejam pessoais não têm necessariamente caráter privado, ao contrário, têm abertura natural para a publicidade, como indica, em primeira análise, o nome (MASILI, 2018). Ao projetar a personalidade de um indivíduo, os dados pessoais devem ser precisos, ainda que não violem a sua privacidade. Há de se considerar que “dados que são pessoais, mas estão em domínio público, também se inserem na esfera de proteção de seu titular.” (MASILI, 2018, p. 31).
Para Bioni (2016), a proteção de interesses relacionados a dados diretamente vinculados à individualidade, embora não pertencentes a uma esfera de segredo, não se restringe à simples omissão do que não se está disposto a revelar aos outros. “Propõe-se que a proteção dos dados pessoais não deve ser compreendida sob uma lente egoística individualista, reforçando-se a sua alocação dogmática junto aos direitos da personalidade em oposição ao direito de propriedade” (BIONI, 2016, p. 276). Considerando que os dados estejam vinculados a uma pessoa, refletindo uma das dimensões dessa pessoa, estarão, pois, incluídos no conjunto dos direitos da personalidade.
A proteção dos dados pessoais estaria assim no mesmo patamar de importância da privacidade, haja vista o seu enquadramento também como direito da personalidade e não como parte integrante do direito à privacidade. E, é por se constituírem em uma parcela da personalidade do indivíduo que os dados pessoais merecem tutela jurídica, de modo a assegurar a igualdade e a liberdade do seu titular.
REFERÊNCIAS
BIONI, Bruno R. Autodeterminação informacional: paradigmas inconclusos entre a tutela dos direitos da personalidade, a regulação dos bancos de dados eletrônicos e a arquitetura da internet. 2016. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 08 Abr. 2021.
______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 Abr. 2021.
______. Lei nº. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm>. Acesso em 10 abr 2021.
CARVALHO, Mariana Amaral. Capitalismo de vigilância: a privacidade na sociedade da informação. 2019, 103 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2019. Disponível em: <http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFS-2_b19882b398620ea7410a7c4f48e69931>. Acesso em: 08 Abr. 2021.
LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na Internet. São Paulo: Saraiva, 2011. 402 p.
MASILI, Clarissa Menezes Vaz. Regulação do Uso de Dados Pessoais no Brasil: papel do usuário na defesa de um direito à tutela de dados pessoais autônomo. 2018, 186 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, abr. 2018. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/34290>. Acesso em: 09 Abr. 2021.
MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas
gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014. 248 p.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 09 Abr. 2021.
RODOTÀ, Stefano. Privacy, libertà, dignità. 26ª International Conference on Privacy and Personal Data Protection. Wroclav. 2004. Disponível em: <https://www.garanteprivacy.it/web/guest/home/docweb/-/docweb-display/docweb/1049293> Acesso em: 09 Abr. 2021.
______. Tecnologie e diritti. Bologna: Il Mulino, 1995. 416 p.
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2ª ed., 2013. 275 p.
SOMBRA, Thiago Luís Santos. Fundamentos da regulação da privacidade e proteção de dados pessoais: pluralismo jurídico e transparência em perspectiva. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. 240 p.
Por:
- Mariangela Vicente de Barros, aluna regularmente matriculada na Disciplina CAD310050-41010034MP (20202) – Proteção de dados pessoais: conceitos introdutórios para a administração universitária do Programa de Pós-Graduação em Administração Universitária da UFSC.
- José Pereira do Canto, aluno regularmente matriculado na Disciplina CAD310050-41010034MP (20202) – Proteção de dados pessoais: conceitos introdutórios para a administração universitária do Programa de Pós-Graduação em Administração Universitária da UFSC.
- Juliana Salvador Alves, aluna regularmente matriculada na Disciplina CAD310050-41010034MP (20202) – Proteção de dados pessoais: conceitos introdutórios para a administração universitária do Programa de Pós-Graduação em Administração Universitária da UFSC.
- Soraia Selva da Luz, aluna regularmente matriculada na Disciplina CAD310050-41010034MP (20202) – Proteção de dados pessoais: conceitos introdutórios para a administração universitária do Programa de Pós-Graduação em Administração Universitária da UFSC.
Em 16/06/2021